http://plato.stanford.edu/archives/win2014/entries/kierkegaard/.
[4]Kierkegaard, Søren Aabye. “The Book of the Judge” Søren Kierkegaard’s Journals & Papers.
[5]KIERKEGAARD, Søren Aabye. Concluding Unscientific postscript to The philosophical crumbs. Tradução e edição HANNAY, Alastair. Editora Cambridge University Press 2009, p. 280–281.
[6]KIERKEGAARD, Søren, A. Las Obras Del Amor, Meditaciones cristianas en forma de discursos. Traduzido por Rivero, Demétrio G. Ed. Sigame Salamanca, 2006. P. 181.
[7]Cf. GOUVEA, Ricardo Quadros, 2000. Paixão pelo paradoxo p. 131.
[8] Cf. HANNAY, Alistair, Introdução p. XXVII. Concluding unscientific postscript to The philosophical crumbs. Cambridge University Press, 2009.
[9]Cf. KIERKEGAARD, 1979. 2º cap.: “Há uma suspensão teleológica da moralidade?” P. 141.
CAPÍTULO II
1. A Realidade da Fé
O relato do Gênesis é o relato de uma grande provação pela qual passa Abraão; de sua corajosa atitude e de sua silenciosa angústia. Sua situação era instável a ponto de estar em risco de ser destituído do lugar honroso na história que acabaria por conquistar. Diriam então à vista do monte Morija: “veja, foi ali que Abraão duvidou!”, não sem algum assombro. Porém o que lemos no fim do relato é, pelo contrário, uma bela declaração de aliança renovada entre Deus e o povo escolhido, onde Deus diz que abençoará todas as gerações que viriam dele através dos séculos.
Kierkegaard vai usar do relato de Gênesis para nos mostrar quão longe a fé de um homem pode leva-lo. Também servirá como breve estudo das dificuldades do espírito no trajeto da existência quando este espírito resolve ser fiel a si mesmo e seguir seus instintos mais nobres, doutra maneira, aceitando o paradoxo, tomando para si o dever, e enfrentando a angústia com resignação. Finalmente, podemos entender Kierkegaard como o arauto da grande verdade da fé, uma fé que raramente se encontra hoje em dia e que, de fato, pode mover montanhas:
A história de Abraão comporta uma suspensão teleológica da moral. Como Indivíduo, superou o geral. Tal é o paradoxo que se recusa à mediação [da dialética]. Não se pode explicar nem como aí entra nem como aí permanece. Se não é este o caso de Abraão, nem sequer este alcança ser herói trágico, é um assassino (…). A fé é um milagre; no entanto ninguém dela está excluído; porque é na paixão que toda a vida humana encontra a sua unidade, e a fé é uma paixão. (KIERKEGAARD, 1979, p. 252).
O entendimento comum diz que fé é uma força espiritual que nos faz acreditar e que independe de religião. Que a fé parece ser um termo pré-religioso, mas, aqui, não é este o caso. Quando se fala em fé se fala especificamente em fé cristã — ou de outra maneira, qualquer outro objeto de fé que não seja cristo é idolatria, tratando-se, portanto, a fé como uma invenção unilateral dos homens para adorar Deus. Dito isso, se começa a perguntar do que esta fé, afinal, é capaz. Ou seria melhor perguntar do que ela não é capaz. Thoreau, pensador norte-americano que era contemporâneo de Kierkegaard, disse: “Embora eu não acredite que uma planta vai brotar onde não há semente plantada, tenho grande fé na semente. Convença-me de que você tem uma semente lá, e eu estou preparado para esperar maravilhas.[1]”.
Quão maravilhosa foi a fé de Abraão, diria Kierkegaard. Sua retitude, seu desprendimento, sua moral. Sua fé é o maior exemplo que temos à mão para definir o status de paixão da fé, pois, se paixão é a qualidade original do homem, se este pathos é a chave que abre o entendimento do homem pelo homem, então a fé é o maior fenômeno da qual esta paixão é capaz, e Abraão, quando renunciou à ética comum dos homens, quando decidiu enfrentar o medo causado pelo abandono e solidão, se tornou o patriarca desta mesma fé.
No final da obra ele será condescendente até mesmo com aqueles que não conseguem alcançar a fé, pois mesmo para eles. pois:
(…) a vida comporta suficientes tarefas, e se as aborda com sincero amor, a sua vida não será perdida, mesmo que não possa ser comparada à existência dos que aprenderam e alcançaram o mais alto (KIERKEGAARD, 1979. p. 185).
1.1. Acreditar em virtude do Absurdo
De várias maneiras se podem abordar o paradoxal na obra de Kierkegaard — pois ele usa algumas definições que variam sutilmente dependendo de qual o contexto, mas é exatamente o contrário disso que podemos afirmar em relação à maneira com que se pode abordar a fé em sua obra. Fé para Kierkegaard era o único guia confiável para se atravessar a existência com firmeza e constância. E é só através da fé que voltaremos ao equilíbrio; equilíbrio ameaçado pelo racionalismo exacerbado das elites intelectuais da sua época, que tornaram o desequilíbrio norma padrão.
Kierkegaard tinha uma predileção especial pelo paradoxo, seja por que os ensinamentos de Cristo são repletos de sabedoria que parece paradoxal, seja por que na linguagem da qual ele usa para abarcar a fé este seja o expediente mais útil. Talvez até mesmo se possa afirmar que não haveria maneira alguma de transmitir os ensinamentos de Cristo sem paradoxos; nunca poderiam ter sido enunciados de outra maneira (que não paradoxal), pois sua mensagem atemporal extrapola os limites da linguagem como tal e, por extensão, da racionalidade humana.
Pode-se começar a entender que papel o paradoxal tem em Kierkegaard se nos perguntarmos primeiro que papel ele tem no Novo Testamento. Eis que logo no começo do livro Johannes nos lembra de que ele aprendeu dos antigos
Ninguém hoje se detém na fé — vai-se mais longe. Passarei, sem dúvida, por néscio se me ocorrer perguntar para onde por tal rumo se caminha (…). Não sucedia assim antigamente; era então a fé um compromisso aceite para a vida inteira; porque, pensava-se, a aptidão para crer não se adquire em poucos dias, ou escassas semanas. (KIERKEGAARD, 1979, p.110).
Outro apelo do paradoxo nos escritos de Kierkegaard está na função de criar uma muito bem-vinda mudança de perspectiva desta “Religiosidade A”, idealista e imanentista, e cuja alternativa foi por isso chamada por Climacus de “Religiosidade B” (KIERKEGAARD, 2009, pp. 506–507), ou “Cristianismo Paradoxal”, onde a principal característica dos ensinamentos e a ênfase da fé estão nos paradoxos. Isso tem por consequência o efeito de desacreditar a lógica dialética hegeliana donde já não havia mais lugar para os paradoxos, uma séria consequência com a qual Kierkegaard se embateria em todas as suas obras heteronômicas com o fim de “salvar” os evangelhos deste esvaziamento de conceito que Hegel promovera.
Quando Kierkegaard usa da expressão (e ele a usa muitas vezes, dez vezes pelo menos na edição “Os Pensadores” de 1979) acreditar [ou ter fé] em virtude do absurdo, ele quer dizer com isso simplesmente que é em virtude de parecer absurdo para aquele que não tem fé, e que, portanto a fé inverte os valores e a perspectiva de quem vê de fora, porém não só isso, pois:
A dialética da fé é a mais sutil e notável de todas; tem uma sublimidade de que posso ter uma ideia, mas não mais que isso. (…) Tal é o cume onde está Abraão. O último estádio de que ele se distancia é a resignação infinita. Vai mais longe realmente e chega até a fé — porque, na verdade, todas as caricaturas da fé, essa lamentável preguiça dos lábios que dizem: nada urge, inútil é lançar-nos ao caminho antes do tempo, essa mesquinha esperança que calcula: pode saber-se o que sucederá? … Talvez que…, todas essas paródias da fé fazem parte dos mistérios da vida e já a infinita resignação as cobriu com o seu infinito desprezo. (KIERKEGAARD, 1979, pp. 128–129).
Aqui Kierkegaard faz jus ao papel de pai do existencialismo quando afirma que devemos nos lançar na vida, por que de nada adiantam conjecturas vazias ou cálculos exagerados. Na mesma página ele ainda vai dizer que nunca encontrou um cavaleiro da fé, mas que se houvesse uma oportunidade, em contraste com aqueles que buscam conhecer o mundo e suas maravilhas, ele não mediria esforços para encontrar tal homem.
Com a expressão “Fé em virtude do absurdo”, Kierkegaard passa a considerar o paradoxo e o absurdo como aquilo que é essencialmente cristão. Neste sentido o homem só pode se aproximar de Deus a partir de uma firme aceitação do paradoxo como parte da própria ontologia do indivíduo perante a verdade eterna. Este é o significado de fé para Kierkegaard, e deveria assim ser para todo cristão. Mais além ele irá enfatizar que a marca do cristianismo é o paradoxo, e que Deus representa o paradoxo absoluto:
A resignação não implica a fé; porque o que eu adquiro no seio da resignação é a minha consciência eterna; e é isso um movimento estritamente filosófico que tenho a coragem de efetuar quando é requerido e que posso infligir a mim próprio; porque, de cada vez que uma circunstância finita me vai ultrapassar, imponho a mim próprio o jejum até o instante de realizar o movimento; porque a consciência da minha eternidade é o meu amor para com Deus e este amor é tudo para mim. Para alguém se resignar, não é indispensável a fé, mas ela é precisa [necessária] para obter a mínima coisa para além da minha consciência eterna: é esse o paradoxo. (KIERKEGAARD, 1979, p.118).
O homem tem em si a semente do infinito. Sua escolha é (dever) de aceitar esta condição e prezar por ela. Aqui Kierkegaard vai dizer que a resignação infinita é infinita a partir da consciência que se tem de si mesmo, mas que essa mesma consciência não é suficiente para elevar o homem ao estágio mais avançado da existência, daí a necessidade do salto, da ruptura, pois não há harmonia de opostos aqui. Doutra maneira ele está condenado a angustiar-se até o fim, seja por querer ser a si mesmo ou querer ser outro. Mesmo a relação com Deus está sob o risco de perder-se, pois o homem tem de encontrar em si a força que o libere. Conclui-se daí que a fé é o fator determinante da salvação; que a fé é parte indissociável do paradoxo e que ela vai inverter os valores estabelecidos: o que antes era interior se torna exterior, o que era exterior fica sendo interior. (KIERKEGAARD, 1979, p.254).
1.1.1. Os Paradoxos da Fé em Kierkegaard
Uma das definições centrais de paradoxo na obra analisada é aquela que se refere à existência como paradoxo:
A fé não constitui, portanto, um impulso de ordem estética; é de outra ordem muito mais elevada, justamente porque pressupõe a resignação. Não é o instinto imediato do coração, mas o paradoxo da vida. (KIERKEGAARD, 1979, p. 136).
Aqui ele está rechaçando a noção hegeliana de fé que considerava a fé uma espécie de intuição e, portanto, um instinto, menor na concepção de homem e menos importante que a razão (ver mais adiante). Kierkegaard vai de encontro com esta definição invertendo os valores, e colocando a fé como a mais importante capacidade que o homem tem para lidar com a vida e sua inerente inquietação.
Para Kierkegaard a fé é um impulso que nasce do espírito temporal em relação com a verdade atemporal. Ela se expressa pela resignação, pois, quanto maior é a fé, maior é a aceitação. Importante ressaltar que para Kierkegaard a verdade eterna nada tem em si de paradoxal, mas que assim ela se torna quando relacionada à pessoa existente no mundo temporal. Daí a concepção ontológica de paradoxo (primeira definição), pois ela é o próprio meio de relacionamento que temos com a verdade eterna.
A segunda forma que o paradoxo assume nos escritos kierkegaardianos é o de limite da compreensão humana. Isso significa que uma compreensão eficiente deve abranger termos que não estão implícitos no sistema do qual esta mesma compreensão se origina. É o significado mais comum que Kierkegaard utiliza quando fala de paradoxo e de fé em relação ao sistema hegeliano, isto é, os princípios fundamentais do sistema são estabelecidos à priori pela fé e não podem ser constatados sob o risco de reduzir-se a um raciocínio circular.
Isso condiz perfeitamente com a definição etimológica de paradoxo, isto é, de defeito, de bizarro, “de falha na matrix[2]”. Mas se vai mais além por que aqui Kierkegaard não apenas faz uso do paradoxo para negar o sistema hegeliano, ele o usa para desconstruí-lo aos poucos, distanciando-se passo-a-passo de qualquer pretensão de especulação sistemática filosófica. Com isso ele afirma que quando o paradoxo (segunda definição) está na própria base deste sistema, qualquer afirmação que tenha a pretensão de ser “de fora”, “objetiva” se torna uma aporia.
Agora podemos no debruçar mais demoradamente nos aspectos da filosofia hegeliana que foram alvo da crítica de Kierkegaard em seus trabalhos heteronômicos — motivados pela insistência de Hegel em ignorar a função do paradoxo inerente da fé como componente importante da mediação justamente por torna-la impossível. Primeiramente: as ideias de que a filosofia possa começar do Nada ou sem nenhuma forma de pressuposição, e, finalmente, de que uma filosofia baseada na lógica tenha como componente uma mediação que permite o movimento da consciência a uma compreensão absoluta e livre de impedimentos.
Para Hegel a noção de um saber intuitivo e imediato como para ele era a fé era problemático, pois vinha de encontro com a mediação como geradora da autoconsciência transformadora (Deus). Para Kierkegaard, no entanto, este conceito de fé era equivocado por que ignorava a cumplicidade necessária para alguém ser digno desta fé. Cumplicidade esta que significa nada menos do que viver em dever para com Deus a ponto de sacrificar o que mais se ama e correr o risco de ser chamado de assassino. Doutro modo:
A nova filosofia [hegelianismo] permitiu-se substituir, pura e simplesmente, o imediato pela “fé”. Quando se age desta maneira é ridículo negar que a fé existiu sempre. (…) A fé é precedida de um movimento de infinito; é somente então que ela aparece, nec inopinate, em virtude do absurdo. Posso compreendê-lo, sem por isso pretender que possuo a fé. Se ela não é outra coisa senão o que humanas, ainda que hoje seja desdenhada; mas, antes de tudo, é necessário tê-la realizado, é necessário primeiro que o Indivíduo se haja esgotado na infinitude, para chegar então ao ponto em que a fé pode surgir. (KIERKEGAARD, 1979, PP. 254–255)
A fé é: aquilo que só surge em virtude do absurdo — daí sua superioridade ao resto, por assim dizer. Nisto residirá a especialidade do cristão, pois somente ele tem a capacidade de se desesperar, e, portanto, de se salvar de sua condição pecaminosa.
2. Elogio de Abraão
Para Kierkegaard a expressão de Deus acontece de forma misteriosa, assim como é misterioso o tema religioso da Encarnação, da Trindade, etc.. É natural, portanto, que para ele a fé seja uma forma única que todos temos de expressar este amor a Deus e também de ter acesso a Ele. A obra Temor e Tremor é um tratado sobre as difíceis etapas que um indivíduo tem que enfrentar para se tornar verdadeiro a si mesmo.
Kierkegaard começa com uma citação de Hamann, filósofo romântico alemão: “O que Tarquínio, o Soberbo pretendia designar [dizer, demonstrar] com as papoulas do seu jardim, compreendeu-o o filho, não o mensageiro” (KIERKEGAARD, 1979, p. 109). Tarquínio, o Soberbo foi o último rei de Roma e reinou de 535 A.C. até 509 A.C. Segundo a história quando o filho de Tarquínio, o Soberbo conseguiu abrir caminho até o poder e tinha uma cidade sobre seu controle, enviou um mensageiro para seu pai perguntando o que deveria fazer com a cidade. Tarquínio, não confiando no mensageiro, não deu nenhuma resposta, mas levou-o para o jardim, onde com a bengala cortou as flores das papoulas mais altas. O filho entendeu a partir disso que ele deve eliminar os principais homens da cidade.
O conteúdo manifesto do ato de cortar as papoulas, dito de outra forma, a derrubada de seus inimigos, não é de relevância aqui. A ênfase de Kierkegaard parece ser que um ato pode ter um significado completamente diferente para alguém que está a par de uma perspectiva mais esclarecida. O filho entendeu por causa de sua relação especial com seu pai. Da mesma forma, o homem de fé vai ter os mesmos conhecimentos que um homem normal vai ter, mas ele vai ver algo mais por causa de sua fé. Para um cidadão “normal”, Abraão tentou assassinato. Através dos olhos da fé, ele está obedecendo a Deus.
As obras de Kierkegaard assinadas com pseudônimo começam com um prólogo. Temor e Tremor começa com um prefácio de Johannes de Silentio.
Dito de outro modo, pensa-se que existir como Indivíduo é a mais fácil das coisas e por conseguinte interessa constranger os homens a alcançarem o geral. Não partilho nem deste receio, nem desta opinião e pelo mesmo motivo. Quando se sabe, por experiência, que não há nada de mais terrível que existir na qualidade de Indivíduo, não se deve temer afirmar que não há nada de maior; mas também é-se obrigado a exprimi-lo de maneira a não fazer dessas palavras uma ratoeira para o extraviado que é necessário, antes de mais, reconduzir ao geral, ainda quando as suas palavras não deixem lugar ao heroísmo. Se não se ousa citar semelhantes textos, também se não deve ter o atrevimento de mencionar Abraão; e se pensamos que é relativamente fácil existir como Indivíduo, mostramos indiretamente uma inquietante indulgência para conosco; porque se realmente se tem respeito por si próprio e cuidado com a alma, está-se seguro de que aquele que vive sob o seu próprio domínio, sozinho no seio do mundo, leva uma vida mais austera e mais isolada que a de uma jovem no seu quarto. (…) O herói trágico renuncia a si mesmo para exprimir o geral; o Cavaleiro da Fé renuncia ao geral para se converter em Indivíduo. (KIERKEGAARD, 1979, p.174).
Kierkegaard tomará emprestados alguns exemplos dos clássicos. Assim ele vai se referir ao mito grego do sacrifício de Ifigênia para nos lembrar de que com resignação Agamenon alcançaria o epíteto de herói trágico, encontrando repouso no geral; porém para um homem da estatura de Abraão, para se tornar Indivíduo o geral era empecilho. Assim: Agamenon renunciou ao seu amor paternal e o dever de cuidar de sua filha de modo a exprimir a vontade geral de acalmar os ânimos do deuses, porém Abraão foi infinitamente maior pois renunciou a si mesmo e ao geral, e por isso mesmo nunca mais voltou ao geral, se transformando em indivíduo.
Nisso fica subentendido a importância da escolha na existência, pois, se muitas vezes ficamos presos entre alternativas, outras vezes sequer sabemos que estamos escolhendo, criando escolhas de escolhas. A importância da subjetividade e seu papel nuclear na escolha do indivíduo são declarados por Kierkegaard quando, analisando o recolhimento e a profunda introspecção de Abraão diante da escolha que teria de fazer declara que: “só o indivíduo pode decidir se está em crise ou se é um cavaleiro da fé” (KIERKEGAARD, 1979, p. 157). Mais uma vez, Kierkegaard deixa ao cargo do leitor decidir qual a culpa de Abraão nos atos que precederam a ordem de Deus de imolar seu filho.
Dando continuidade à apresentação da obra:
O presente autor de nenhum modo é um filósofo. Não compreendeu nenhum sistema da filosofia se é que algum existe ou esteja concluso. O seu débil cérebro assusta-se já bastante ao pensar na prodigiosa inteligência que é necessária a cada um, sobretudo hoje, quando toda a gente estadeia tão prodigiosos pensamentos! Embora se possa formular em conceito toda a substância da fé, não resulta daí que se alcance a fé, como se a penetrássemos ou ela se houvesse introduzido dentro de nós. O presente autor de nenhum modo é filósofo. É sim, poetice et eleganter, um amador que nem escreve sistema nem promessas de sistema; não caiu em tal excesso nem a ele se consagrou. Para ele, escrever é um luxo suscetível de ganhar tanto mais significação e evidência quanto menos leitores e compradores tiver para as suas obras. (KIERKEGAARD, 1979, p.110).
É no prólogo que o autor anuncia que não é filósofo no sentido de criador de sistemas. O “sistema” é uma referência ao sistema de filosofia hegeliano, o qual buscou explicar todos os fenômenos possíveis de serem explicados, incluindo os fenômenos religiosos. Ele pensou que tal tarefa era logicamente impossível, uma vez que o filósofo vive dentro do sistema que ele está tentando avaliar; ainda que se julgue estar de fora.
Enquanto Kierkegaard considera a si mesmo como um poeta, em algum ponto ele dirá “Mas eu paro; eu não sou um poeta; deixo-me guiar simplesmente pela dialética.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 164). Isso pode ser sua maneira de dizer que o paradoxo da fé é impossível de ser resolvido por meio da dialética hegeliana. No entanto às vezes o pseudônimo de Kierkegaard alternativamente clama ser um dialético (filósofo) e um poeta.
O poeta não pode cumprir aquilo que o herói realiza: só lhe resta admirá-lo, amá-lo e rejubilar com ele. Entretanto não é menos favorecido do que este porque o herói é, por assim dizer, o melhor de si mesmo, aquele de quem está enamorado, feliz por não ser herói, para que o seu amor seja feito de admiração. O poeta é o gênio da recordação. (KIERKEGAARD, 1979, p. 117).
Em relação à declaração de que para ele é um luxo “quanto menos leitores e compradores tiver sua obra”, é verdade que Kierkegaard não vendeu bem. De fato, seus livros foram publicados a custo próprio, o Post Scriptum na época vendeu menos de 200 cópias, e só em 1849 outro livro anterior seu, Enten/Eller (Ou isso ou aquilo: fragmentos da vida), seria publicado em nova edição[3].
Do que se tratará o Elogio de Abraão? Como Abraão se tornou o pai da fé? Kierkegaard diz:
Não! Nada será perdido dos que foram grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto que amou. Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos.(…) “Um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas — mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior. Os grandes homens hão-de sobreviver na memória dos vindouros, mas cada um deles foi grande pela importância do que combateu. Porque aquele que lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo próprio foi grande pela vitória que alcançou sobre si — mas aquele que lutou contra Deus foi o maior de todos (KIERKEGAARD, 1979, pp. 117–118).
Mais uma vez vemos aqui a obra filosófica interpelando a realidade vivida. Kierkegaard também enfrentaria grande parcela de sofrimento quando decidira romper o noivado, abandonando o conforto de uma vida próspera em sociedade, escolhendo a solidão como companhia e sofrendo o julgamento tenaz da sociedade em que vivia, e pode-se dizer que esta foi a sua luta com o anjo.
2.1. Subida ao Monte Morija
Para Kierkegaard o trabalho filosófico era o trabalho de aliviar aquilo que oprime nosso coração. Pelo menos assim se presume, pois a Atmosfera, que se segue ao prólogo, na edição em inglês tem o nome de Expectoração Preliminar, isto é, segundo o dicionário Houaiss, do latim “expectoro”, “lançar fora do peito, isto é, do coração”, e começa assim:
Era uma vez um homem que tinha ouvido, na sua infância, a formosa história de Abraão, que, posto à prova por Deus, vencida a tentação sem perder a fé, recebia, contra toda a expectativa, o seu filho pela segunda vez. (KIERKEGAARD, 1979, p. 113).
E termina assim: “Este homem não era um sábio exegeta, pois nem sequer conhecia o hebreu. Se o tivesse podido ler, então teria, sem dúvida, compreendido facilmente a história de Abraão.” Sabe-se que Kierkegaard sabia Hebraico e que ele tinha alguns livros nesta língua em sua biblioteca particular. Neste caso quem não poderia saber hebraico era Johannes de Silentio.
A Atmosfera consiste de quatro diferentes e fantasiosas versões da história da subida de Abraão ao monte Morija para sacrificar seu filho. Cada uma delas enfatiza um ponto de vista diferente que traz luz ao texto. Mas o primeiro exórdio começa contando como um homem ouviu a história de Abraão quando criança, e quão frequentemente retornaria à história como homem já crescido. Isto parece guiar toda a obra, sendo que a criança (o leitor) precisa desenvolver-se na estrutura mental religiosa que trará luz ao relato de Gênesis.
Na primeira abordagem da história do Gênesis, Abraão fala com seu filho, Isaac:
Estúpido! Supões que sou teu pai? Sou um idólatra! Crês que obedeço às ordens de Deus? Faço o que me apetece! Então Isaac fremente e com grande angústia, gritou: Deus do Céu? Tem piedade de mim! Deus de Abraão, tem piedade de mim, sê meu pai, porque já não tenho outro na Terra! Mas Abraão ciciava: Deus do Céu, dou-te graças. Vale mais que me julgue um monstro do que perca a fé em ti. (KIERKEGAARD, 1979, p. 114).
Alguns intérpretes veem aqui uma aparente relação com a vida do autor; quando Kierkegaard e Regine Olsen eram noivos. Quando Kierkegaard se determinou inadequado para o papel de marido, ele passou a convencer Regine que era um canalha, a fim de que ela não entrasse em um relacionamento duradouro com ele. Se esta interpretação estiver correta, ele consideraria a si mesmo como Abraão e ela como Isaac. Ele usou deste expediente para romper com seu relacionamento: pintando-se com pinceladas negras, tudo de forma a preservá-la. Isto se torna mais evidente no final da obra “Diário de um sedutor”.
Na segunda abordagem da história do Gênesis, Abraão sacrifica o cordeiro, e assim preserva Isaac.
Daquele dia em diante, Abraão ficou velho; ele não podia se esquecer que Deus tinha ordenado ele a fazer aquilo com Isaac. Isaac resplandecia como sempre, mas os olhos de Abraão tinham se escurecido, e ele não via mais alegria. (KIERKEGAARD, 1979, p. 114).
Na terceira abordagem, Abraão vai sozinho, se arremessa no chão, implorando a Deus que perdoe ele por ter contemplado sacrificar Isaac, e por ter esquecido sua conduta ética. Na abordagem quatro Abraão não consegue se trazer para sacrificar Isaac e ambos voltam para casa juntos. Isaac perde a fé por causa disso. A Atmosfera fecha com Johannes dizendo, “Então, não há ninguém com a estatura de Abraão? Ninguém capaz de o compreender? (sic)” (KIERKEGAARD, 1979, p. 115).
No final de cada abordagem do relato da Bíblia, Kierkegaard adiciona um pequeno adendo sobre uma criança, presumivelmente a criança que Johannes fora quando ele ouviu a história pela primeira vez. O primeiro adendo diz:
Quando chega o tempo do desmame, a mãe enegrece o seio, porque manter o seu atrativo será prejudicial ao filho que o deve abandonar. Assim ele acredita que a mãe mudou, embora o coração dela continue firme e o olhar conserve a mesma ternura e amor. Feliz aquele que não tenha de recorrer a meios ainda mais terríveis para desmamar o seu filho! (KIERKEGAARD, 1979, p. 114).
Assim como Johannes é a criança que primeiro ouviu a história de Abraão, talvez Kierkegaard seja ele mesmo como a mãe cujo peito deve enegrecer, para que assim o leitor possa “desmamar”. Uma tarefa dura, mas necessária no forjar da individualidade. Para isso ele terá de ser o poeta que é como que guiado dialeticamente pela verdade (KIERKEGAARD, 1979, p. 164).
2.2. O Cavaleiro da Fé
Primeiro, Kierkegaard, em um argumento de redução ao absurdo, pergunta como um assassino pode ser reverenciado como o Pai da fé, referenciando-se diretamente à Hegel:
Como explicar esta contradição do nosso pregador? [Hegel] Poder-se-á dizer que Abraão adquiriu por prescrição o título de grande homem, de tal modo que um ato é nobre quando por ele praticado e revoltante se for praticado por um outro? Neste caso não tenho desejo de subscrever tão absurdo elogio. (…) Sob o ponto de vista moral, a conduta de Abraão exprime-se dizendo que quis matar Isaac e, sob o ponto de vista religioso, que pretendeu sacrificá-lo. Nesta contradição reside a angústia que nos conduz à insônia e sem a qual, entretanto, Abraão não é o homem que é. (KIERKEGAARD, 1979, p. 125).
Kierkegaard nos oferece então o conceito de Cavaleiro da Fé. Ele usa de analogia entre dois exemplos de cavaleiros, Cavaleiro da Fé e o Cavaleiro da Resignação Infinita, para nos demonstrar a superioridade do primeiro. No fim entendemos que o cavaleiro da resignação infinita é a designação que ele daria a si mesmo e a todos os filósofos, reservando a designação de cavaleiro da fé apenas para pouquíssimos homens na história, entre eles, Abraão.
Resignação, de acordo com a definição kierkegaardiana, é “um ato de vontade, não abdicação desesperançada”. O Cavaleiro da Resignação Infinita não é um covarde, mas um homem comprometido por um ato volitivo a agir ou aderir algum código ético. Um exemplo seria o de um comerciante que não se deixa corromper e sempre oferece preços justos aos seus fregueses. Ele tem um código de conduta, embora careça de fé. Sua resignação infinita lhe permite viver com a boa consciência de que fez o melhor que poderia ser feito em determinada situação. Porém, a resignação infinita é inferior à fé, pois a resignação infinita não é capaz de alcançar o estágio mais avançado da existência, a saber, o estágio religioso. O Cavaleiro da Fé é um homem que também é bravo, mas de uma maneira diferente. Ele adere pela fé a um Telos (objetivo, meta) impossível (absurdo aos olhos de quem não crê). Abraão não é apenas um homem de resignação (determinação), mas é o Pai da fé, o supremo exemplo da fé contra e apesar do absurdo. Deus lhe prometeu um filho. Ele teve que esperar por décadas para aquele filho (Isaac) nascer, ainda que em virtude da dúvida de Sara. Então Deus ordena que Abraão sacrifique seu tão aguardado filho. De alguma maneira, Abraão teve a fé de obedecer a Deus mais uma vez, ignorando qualquer tipo de especulação ulterior.
Esta ideia seria inconcebível se, nos nossos dias, não se procurasse por tantas maneiras o insinuar-se sub-repticiamente nas coisas grandiosas. Um cavaleiro da fé não pode de maneira alguma socorrer um outro. Ou o Indivíduo se transforma em cavaleiro da fé, carregando ele mesmo o paradoxo, ou nunca chega realmente a sê-lo. Nessas regiões, não se pode pensar em ir acompanhado. (KIERKEGARD, 1979, p.152).
O paradoxo aqui é a “cruz”, ou o fardo do cristão, que precisa crer antes mesmo de ver, o que parece absurdo. Também, este é o paradoxo da fé tal qual é ilustrado naquele ensinamento de Jesus: “aqueles que quiserem salvar suas vidas a perderão, mas aqueles que a perderem por minha causa, serão salvos” (Lucas 9:24). E a solidão que fica subentendida neste parágrafo é a mesma solidão do homem que caminha em direção ao seu destino. É a solidão de Abraão por três dias em silencio em direção ao monte Morija, e é a solidão de Jesus no jardim das oliveiras quando ora para que lhe afastem o cálice se isso for possível.
O dever com Deus nasce, portanto, de uma vontade livre de egoísmo. Kierkegaard se interessará profundamente por este tema do dever e pelo paradoxo que nele se insere. E irá além. Dirá que este evangelho em particular nos dá a chave que abre nosso coração para nossa verdadeira condição no mundo. Ele usa o exemplo do homem que se casa e exige que a esposa abandone os pais, mas que não pode esperar que isso seja demonstração de amor, pois o amor manifestado pelos pais iria também retornar a ele (KIERKEGAARD, 1979, pp. 153–154). Então ele pergunta: o que Jesus queria dizer quando disse para abandonarmos tudo se quisermos ser seus discípulos?
Pelo contrário, se considero a tarefa como um paradoxo, compreendo-a, como se pode compreender um paradoxo. O dever absoluto pode então levar à realização do que a moral proibiria, mas de forma alguma pode incitar o cavaleiro da fé a deixar de amar. É o que mostra Abraão. (KIERKEGAARD, 1979, p.154).
Assim, ele estabelece limites para a concepção do Cavaleiro da Fé. Se, ora, ele tem a coragem de avançar para a outra margem e enfrentar a incerteza causada pelo paradoxo, uma coisa que ele nunca deixará de fazer é amar a Deus, e isso, dito em retrospecto é coisa que apenas uma fé verdadeira pode justificar.
2.3. A Maior Paixão do Homem
Kierkegaard diz que todos têm uma escolha na vida e liberdade consiste usar aquela escolha, pois que escolher já é uma escolha, ainda que muitas vezes seja feita inconscientemente. Esta escolha é o núcleo de nossa existência e é ela mesma livre de determinações de qualquer tipo. Daí a importância da tomada da consciência de si mesmo, pois o abismo que nos separa de nós mesmos e de Deus só pode ser superado desta maneira. Acerca disso ele diz,
Todo o problema reside na temporalidade, no finito. Posso, graças às minhas forças, renunciar a tudo e encontrar a paz e o repouso na dor. Posso enfim a tudo acomodar-me: mesmo se o cruel demônio, mais terrível do que a morte, terror dos homens, mesmo se a loucura me surgisse aos olhos no seu trajo de bufão e me fizesse compreender pelo aspecto que me era chegada a vez de o vestir, podia ainda salvar a alma, se porventura mais importasse em mim o triunfo do meu amor para com Deus do que a felicidade terrestre. (KIERKEGAARD, 1979, p.134).
Kierkegaard trata de questões essenciais ao desenvolvimento humano e espiritual quando investiga as causas de ruptura de um modo de ser para outro modo de ser, de uma forma de existir para outra forma de existir. Sua posição é de que não pode haver conciliação entre o velho e o novo, o que o opõe diretamente contra a dialética hegeliana. Kierkegaard dirige então o leitor para o livro de Hegel Princípios da Filosofia do Direito, especialmente o capítulo sobre “Moralidade Subjetiva”, terceira seção, onde ele escreve,
No seguinte consiste o direito da vontade subjetiva: que o que ela reconheça como válido por ela seja considerado como bom. É por isso que as suas ações, como fins que ela introduz na objetividade exterior, não lhe devem ser imputadas como justas e injustas, boas e más, legais e ilegais, senão segundo o conhecimento que ela tem do valor destas ações nesta objetividade. (…) Este direito de examinar o bem é muito diferente do direito de examinar uma ação como tal (§ 117Q). Deste ponto de vista, o direito da objetividade adquire a forma seguinte: como é uma modificação que tem de existir no mundo real, e também pretende portanto ser nele reconhecida, a ação há de estar necessariamente conforme com os valores deste mundo real. Quem nesta realidade quer introduzir a sua ação, no mesmo passo se submete às leis dela e reconhece os direitos da objetividade**.** Do mesmo modo, no Estado como objetividade do princípio da razão, a decisão jurídica de responsabilidade não pode limitar-se ao que se considera conforme à sua razão própria, à apreciação subjetiva do justo e injusto, do bem e do mal ou às exigências que se levantam para satisfazer a sua opinião. No terreno da objetividade, o direito de apreciação tanto vale para o lícito como para o ilícito, tais como se apresentam no direito em vigor, e reduz-se ao sentido mais estreito da palavra: conhecimento como fato de ser informado acerca do que é lícito e, por conseguinte, obrigatório. Com a publicação das leis e a vigência dos costumes, o Estado tira ao direito de exame o aspecto formal e a contingência que para o sujeito o direito ainda conserva ao nível em que nos encontramos. (HEGEL, 1997, p. 115).
A história de Abraão iria de encontro com esta teoria. Kierkegaard diz que Hegel estava errado por que ele não protestara contra Abraão negando sua posição como pai da fé e o chamara de assassino (KIERKEGAARD, 1979, pp.141–142). De fato, ele suspendera a moralidade e “falhara” em seu dever de seguir o geral.
O que Hegel não entenderia, é que Abraão suspendeu temporariamente a moralidade em virtude de um objetivo maior e que,
Para tanto é necessário paixão. Todo o infinito se efetua apaixonadamente; a reflexão não pode produzir qualquer movimento. É o salto perpétuo na vida que explica o movimento. A mediação é uma quimera que, em Hegel, tudo deve explicar e que constitui, ao mesmo tempo, a única coisa que ele jamais tentou explicar. Mesmo para estabelecer a distinção socrática entre aquilo que se compreende e não compreende é indispensável paixão e ainda com maior razão, naturalmente, para realizar o movimento socrático propriamente dito: o da ignorância. (KIERKEGAARD, 1979, p.133).
Com mediação, Kierkegaard quer dizer a mediação efetuada através do geral, para o geral. Segundo ele, a fé é exatamente aquele “fator” que inverte o jogo: o indivíduo, antes submetido ao geral, passa agora a lhe ser superior; e este é um paradoxo que precisa ser aceito se quisermos entender como se efetua o salto da fé, da esfera ética para a religiosa. Por exemplo: Abraão era apenas um humilde servo de Deus até receber seu chamado, então, pela fé e através da fé, ele deixou para trás sua vida de pai de família e seguiu para cumprir seu destino, não sem antes passar pela dor da separação, da resignação e, finalmente, da ruptura com o modo de vida ético, da vida em família, do casamento, do acordo em comum de comunicação. Na narração de Kierkegaard o vemos apontando a volta de Abraão ao seio da família, mas, na bíblia, seu destino é ainda mais árduo, como ele partindo sozinho para o lugar que Deus lhe designara para viver o resto dos dias.
De fato, um dos termos hegelianos mais rechaçados por Kierkegaard é o da Mediação. Mediação em Hegel é o mecanismo básico para a filosofia operar. É o que chamamos quando tese e antítese resultam em uma síntese superior a partir do esquema da dialética. Mais do que isso, em Hegel era a expressão própria de Deus, quando a consciência volta a si mesmo, mediando-se a si mesma. Para Kierkegaard, no entanto, não é assim quando se trata de fé e cristianismo. A tal ponto que ele declarou que “Filosofia e Cristianismo nunca podem ser unidos[4]” Ao menos não enquanto a mediação for o pressuposto para busca filosófica, pois o paradoxo inerente da fé cristã não se enquadraria neste método filosófico.
Eis-nos de novo no mesmo ponto. Se não há um interior oculto, e justificado pelo fato de o Indivíduo como tal ser inferior ao geral, a conduta de Abraão é insustentável, porque desdenhou as instâncias morais intermediárias. Mas se possui esse interior oculto, estamos em presença de paradoxo irredutível à mediação visto que repousa no fato de o Indivíduo, como tal, estar acima do geral, e de este ser mediação. A filosofia hegeliana não admite um interior oculto, um incomensurável fundamentado em direito. Consequente ao reclamar a manifestação, não está, entretanto, na verdade quando pretende considerar Abraão como pai da fé e dissertar a tal respeito. Porque a fé não é a primeira imediatidade, mas imediatidade ulterior. (KIERKEGAARD, 1979, p. 159).
Quando Kierkegaard admite que a primeira imediatidade esteja no domínio estético ele está a se referir à esfera estética da vida do homem, a primeira na ordem estabelecida por Kierkegaard e da qual muitos indivíduos às vezes nunca saem. A fé é imediatidade ulterior porque vem mais tarde e está próxima do eterno. Para Hegel, no entanto a fé era uma maneira rudimentar do espírito se aproximar da verdade metafísica. Nesse sentido Hegel inverteria os sentimentos e colocaria sentimento religioso como imediatidade, mas uma imediatidade primeira, primordial, ao passo que para Kierkegaard era obviamente o contrário, e toda a obra Temor e Tremor trata de demonstrar isso.
Por exemplo, Abraão em dado momento, após saber da ordem de Deus, tinha de escolher entre os requerimentos éticos de seu entorno e o que se esperava dele como seu dever absoluto com Deus. Daí que Kierkegaard relata quão difícil é para alguém na posição dele ter de sair do geral, da comodidade como indivíduo e ter que se pôr-a-prova. A tarefa é simples, mas muito penosa. Significa nada mais nada menos do que sacrificar o que mais se ama. Se ele não fala nada a ninguém, guardando tudo para si, não é por egoísmo, numa atitude que hoje comumente se atribui a um estereótipo masculino de ser, mas porque o paradoxo assim se expressa naquele momento. É por isso que Kierkegaard vai chamar a fé de nada menos do que a maior paixão do homem, isto é: a capacidade que o homem tem de se conectar com o sagrado através de uma introspecção profunda consigo mesmo. Paixão, portanto, que depois foi assimilada como romantismo e amor romântico, aqui quer dizer apenas algo como o refinamento máximo do que seja a verdade existencial do homem: sua subjetividade, sua introspecção, sua espiritualidade. E a fé, deste refinamento máximo, paradoxalmente, o salto para algo mais superior ainda.
3. Ordet
A Palavra (Ordet no original em dinamarquês) é uma produção dinamarquesa de 1955, dirigida por Carl Th. Dreyer (Th. está para Theodor, mas ele preferia ser chamado como está no primeiro) baseada na peça de Kaj Munk. É um filme em preto e branco impressionante e de grande qualidade, considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema justamente pelo seu minimalismo e labor técnico, que quase sem efeitos especiais consegue persuadir o espectador com a possibilidade de que milagres são possíveis.
A Palavra é sobre uma família de fazendeiros, amorosa e unida, os Borgen, mas que também é abalada por tensões provenientes de uma série de divergências e adversidades — especialmente o comportamento extravagante de um dos irmãos adultos, aparentemente enlouquecido pela dedicação excessiva aos estudos de religião (em determinado ponto, em uma ruptura bem-humorada com a seriedade do filme, Kierkegaard é até mesmo citado). Contudo, nem todos pensam que Johannes (interpretado por Preben Lerdorff Rye) é louco e, quando Inger (interpretada por Birgitte Federspiel), a esposa de outro Irmão, morre em decorrência de problemas no parto, a menorzinha pede a ele que traga a mãe de volta — o que, ao final do filme, faz através de uma ordem. Na verdade, Dreyer deixa a cargo do espectador decidir as coisas. A cena, entretanto, é extraordinariamente poderosa precisamente por ele se recusar a dar respostas e intensificar a carga dramática do filme; a cena nos persuade graças à sua própria atmosfera contemplativa.
Podemos notar no filme pelo menos duas situações que levantam claramente razões para o debate filosófico. A primeira oportunidade acontece no encontro dos dois patriarcas, Borgen e Petersen, o sapateiro, causada pela negação do último em aceitar que sua filha se case com um Borgen. Neste encontro ambos têm uma discussão acalorada sobre qual fé é mais legítima. De um lado, Borgen vai afirmar que sua fé é luz e alegria, e do outro lado Petersen não vai admitir que isso fosse fé alguma. Borgen o acusa de pedantismo, de melancolia e por aí vai. Estes dois tipos de fé, apesar de sua aparente oposição, são complementares, e tornam evidente que, no jogo do destino, ter fé ou não ter fé não depende de ninguém além de nós mesmos.
Quando Petersen vê o milagre de Inger ressuscitando, ele já não mais duvida de seu irmão-na-fé; cede-lhe a filha em casamento com seu filho. Nisso a obra se conecta com o relato de Lázaro, tão crucial para o trabalho filosófico de Kierkegaard depois de Temor e Tremor, a saber**: O Desespero Humano (doença para a morte)** publicado originalmente em 1849. Quando através da palavra, Johannes ressuscita a supostamente morta Inger, surge o segundo ponto de interesse filosófico, isto é, a compreensão bastante acurada do conceito de desespero de Kierkegaard como “doença para a morte”. Anteriormente, no filme, temos uma prévia do que é este desespero em ação quando Inger morre e seu marido, em uma mistura de consternado e revoltado, pergunta pelo sentido da vida, se é que há algum sentido. Nesta cena de grande pathos (sentido de paixão, não de patético), é possível inferir que se demonstrou ali mais sobre a dor do vazio e da incerteza do que se faria em centenas de comentários eruditos sobre as obras de Kierkegaard.
O conceito de angústia em “O Desespero Humano” de Kierkegaard tem uma aplicação filosófica específica, dirigida com fins de diagnosticar primeiro e curar depois. Angústia, ou desespero, é o nome que se dá à sensação bem específica de estar desconectado de Deus, ou de si mesmo. Aqui Kierkegaard vai dizer, no entanto, que é justamente a possibilidade de se desesperar que torna o cristão capaz de se salvar, pois se não houvesse esse desespero seríamos impotentes diante desta mesma angústia. Isso condiz com a doutrina cristã de que somos para o pecado, e que somos incapazes de nos salvar por nós mesmos. Ele também afirma que existe uma distinção entre o homem natural e o cristão, sendo este último o único capaz de tirar proveito do desespero, esta “doença mortal”, desde que se enfrente o sofrimento conscientemente [5]·.
No fim do filme, com Inger “acordando” da morte através da palavra de Johannes não ficam dúvidas da verve existencialista do filme e da influência que nele teve o pensamento de Kierkegaard.
[1]Cf. THOREAU, Henry D. The Succession Of Forest Trees. 1860.
[2]Em referência ao filme norte-americano de 1999 de mesmo nome.
[3]Cf. STORM, D. Anthony. D. Anthony Storm’s Commentary on Kierkegaard.
[4]Cf. HANNAY, Alastair, apud. KIERKEGAARD, 2009, p. xxiii.
[5]Cf. O Desespero Humano, KIERKEGAARD, 1979 ed. Os pensadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
Kierkegaard escreveu abundantemente. Seus escritos contemplam mais de vinte volumes, que, somados ao diário pessoal totalizam uma quantidade incrível de páginas com denso teor filosófico e que radiografaram de modo único o contexto histórico em que ele viveu. Mas, ao mesmo tempo, reflete e evidencia verdades tangentes a todo indivíduo de todas as épocas, criando, por assim dizer, um manual para a vida em qualquer tempo. Acredita-se, portanto, que ninguém que entre em contato com a obra de Kierkegaard saia ileso. Suas palavras se fazem ouvidas à força de repetição e relevância. Também, ninguém pintou acontecimentos bíblicos com tanto realismo e com fins tão sutis. Porém, ele não é inspiração apenas para o cristão, mas é também para qualquer um que tenha interesse em ler uma especulação vivaz e sempre oportuna da história da filosofia e do cristianismo. Seu comentário estético é completo e articulado, sua compreensão dos antigos gregos é comprovada. Coerente com suas palavras foi um rebelde até o fim e mesmo assim dá para contar nos dedos de uma só mão quantas vezes sua vida pessoal foi alvo de atenção indevida. Finalmente, pode-se considerar que ele conseguiu alcançar seu objetivo de viver para a reflexão, uma “reflexão até o fim”.
A intenção principal do presente trabalho foi apresentar a ideia de suspensão teleológica da moralidade e o conceito de paradoxo da fé desenvolvido por Kierkegaard em sua obra Temor e tremor. Como acabamos de ver, o assunto é denso e de grande potencial para debates. Ademais, a obra estudada é de um primor filosófico que poderia, a princípio, confundir um estudante inexperiente e sem orientação. Exceto por isso, os temas escolhidos foram motivo de grande alegria para o autor, e, espera-se, também, para o leitor. É conhecimento geral de que Kierkegaard, apesar de sua escrita tão hábil, não é um autor nem fácil nem muito famoso (dentro dos debates intelectuais), e este trabalho teve a intenção de introduzir seu pensamento novamente no meio acadêmico e revigorar suas discussões à luz das discussões atuais.
O presente trabalho apresentou os conceitos principais para a compreensão da obra Temor e Tremor, e introduziu alguns novos, como o conceito de angústia. Também fez referência ao filme dinamarquês Ordet como expediente multidisciplinar para enriquecer a compreensão do filósofo. Os seguintes conceitos: paradoxo da fé; salto da fé; cavaleiro da fé são os principais conteúdos do presente trabalho; também, subjetividade, existencialismo (introdução) e cristianismo, e de sua apresentação dependeram todo o esforço e tempo desprendidos.
Paradoxo da fé é fé e é também acreditar em virtude do absurdo, pois que fé e paradoxo são inerentemente interligados, ou seja, é acreditar mesmo que ninguém mais acredite, e às vezes até mesmo porque ninguém mais acredita. Assim: algumas vezes é preciso saber calar e outras saber se fazer notar, mas todas as vezes é responsabilidade do indivíduo ser fiel a si mesmo e à sua verdade. Salto da fé é agir em posse deste conhecimento, isto é, em vista da realidade da fé efetuar uma ação volitiva movida pela fé, tornando-se aquilo que se é em virtude do absurdo. Dito de outro modo, se tornar indivíduo, para Kierkegaard, é um dos maiores objetivos do homem, e um dos mais difíceis também, justamente por que envolve esta série de desafios e obstruções.
Cavaleiro da fé é aquele indivíduo que está de acordo com essa lei interna de dever absoluto a Deus, e que, por acaso, se manifesta na exterioridade através da vontade expressa de Deus, como quando Deus nos coloca à prova. Portanto, são dois fatores que consagram o cavaleiro da fé, primeiro, ter fé, depois, ser tentado. Por exemplo: quando Abraão subiu ao monte com a intenção única de realizar a vontade de Deus, ele era Cavaleiro da fé, mas não saberemos nunca se já o era desde o início, apenas esperando ser tentado, e foi só no fim destes acontecimentos que se pôde ver o tamanho desta fé, e foi quando Deus lhe deu um carneiro para sacrificar no lugar de Isaac. Se ele fosse apenas resignado e não tivesse fé, jamais sacrificaria Isaac, pois alguém resignado é capaz de fazer muitas coisas, até mesmo grandiosa, mas apenas alguém com fé é capaz de ir além.
Com isso se afirma logo que paradoxo não é um fato objetivo, mas apenas uma consequência de, pode-se dizer, tentar “ver o infinito através de olhos finitos”. Ele decorre desta transferência da verdade que é fora do tempo para a existência que é dentro do tempo. O paradoxo não é um empecilho, mas um lembrete de que só com fé se é capaz de ir mais além. A fé é a maior paixão do homem. Isto é, a maior prova objetiva (salto da fé) da subjetividade possível de um indivíduo é a fé, pois, apenas quem foi seriamente a fundo de si mesmo, quem despertou para si mesmo — somente este é dada a capacidade de acreditar. Daí que também que se chame fé imediatidade ulterior.
A obra Temor e Tremor não foi o que se chama groundbreaking, uma obra que abalou todas as crenças estabelecidas, que alterou a maneira de pensar da elite intelectual de sua época, mas, dentro do corpus kierkegaardiano é uma obra que merece um destaque especial. Ela é a obra que faz a transição gradual do filósofo para o teólogo. Suas ideias darão continuidade ao projeto de desacreditar Hegel, e darão cabo também do projeto dos três “estágios da vida”, demonstrando a importância da fé nesta mudança de um modo de vida ético para o religioso sem, contudo, abandonar a dialética como método de trabalho. Para Kierkegaard a fé prescindia a filosofia. Suas obras aos poucos se voltarão para uma visão cada vez mais religiosa da vida, e sua preocupação se tornará cada vez mais voltada para o que significa ser um indivíduo cristão em face de um mundo onde a verdade cristã está morta, ou corrompida.
DEDICATÓRIA
Para minha mãe
Salete Fatima de Barros Dantas
Que sempre insistiu tão gentilmente para que eu não desistisse.